20.5.12

Arte poética com mesa de mármore em fundo




Poucas coisas me fizeram sentir tão banal como a tarde de hoje: passada a depenar galinhas. Uma panela velha com água ao lume, mergulham-se os bichos lá dentro e depois é só arrancar-lhes aquilo. Já não sentem nada, tão mortas, diz a minha mãe.

Mais dia menos dia completam-se três meses desde que ela me telefonou Vem depressa, ele partiu a porta e a seguir sou eu. E eu fui. E o meu irmão também. O que se seguiu (e ainda segue) é um rol de reuniões com advogados, trocas de mails a relatar as pressões e abusos psicológicos de que ela foi vítima ao longo de 12 anos e muitas leituras sobre a violência doméstica. Medo, raiva, vergonha, ódio, olhar para a casa onde se nasceu e querer que ela arda, não reconhecer a pessoa que nos pôs no mundo: senti de tudo até mais ou menos ao ponto onde estou agora. E esse ponto é?

Pra já a necessidade extrema de dormir, como se o corpo se tivesse finalmente borrifado para a velocidade mental e para a importância de estar alerta 24 sobre 24. Apago-me em qualquer parte - 15 minutos depois do almoço, no sofá do trabalho, sabem-me pela vida. Depois, perceber exactamente que raios quero fazer daqui pra frente, agora que estou de volta às minhas merdas. É que honestamente não sei. Tenho a pós-gradução parada, um outro curso em que me tinha matriculado também  foi com as couves, as aulas de boxe em stand-by. As doses de concentração dão-me para conversas que não durem mais que 10 minutos, depois disso o meu cérebro é massa de bolo branca e flutuante. Houve este tipo que me convidou pra sair ontem à noite. Ligou-me umas quantas vezes, deixou mensagem. A minha resposta foi Queres sair comigo por que razão? Não somos exactamente amigos e a última vez que bebemos um copo foi completamente normal, sem grande química. O tempo é demasiado precioso e deve ser gasto com quem gostamos mesmo. Really classy, sim senhor. Tanta filosofia de pacotilha e ensinamento moral sobre o tempo, vindos justamente duma gaja que desperdiça o seu a olhar para o vazio, desejando que alguém lhe dê almoço e jantar na boca. 
Alguma coisa há-de valer a pena, alguma coisa vai dar aqui um click qualquer e eu hei-de retomar o curso normal dos dias, como se houvesse assim um enorme e potente comando universal que reata todas as ligações. Deve ser isto o mais perto que estou de fazer uma oração, meu bom deus.

A minha casa está caótica, por arrumar. Eu estou por arrumar. Se calhar as minhas mãos não dão pra mais. Depenar galinhas umas a seguir às outras, Chaplin século XXI. Se calhar tudo o que é suposto fazer agora é isto, é ajudar quando me pedem. 

Talvez não seja pouco nos dias que correm.

8 comentários:

Prezado disse...

Eu até podia dizer que gostei a metáfora, do fecho, do coiso, como diz o Álvaro, mas só posso dizer isto: Que raio é aquilo na foto?

Bluesy disse...

Vê-se mesmo que és menino da cidade. Pago uma imperial a quem adivinhar. Não é assim tão dificil, caramba.

Anónimo disse...

São moelas de galinha.... ainda por limpar, sobre fundo de mármore.
;)

Carina

Bluesy disse...

ding ding ding, a imperial é da Carina.

Alexandra, a Grande disse...

Gosto bastante disso na canja, que aliás, é receita para uma data de males, entre os quais a desarrumação mental. Se isto fosse um filme aparecia-te aí com um tupperware cheio canjinha caseira, para animar. Mas nem isto é um filme nem eu sei fazer canja.

Bluesy disse...

Continuo a preferir as imperiais :)*

Júlio disse...

Damn, já não chego a tempo de sacar o fino (sim, fino).

disse...

estranho, pensei que já tinha visto moelas, eu diria que aquilo da foto eram os chumbos de caçadeira com que caçaram a galinha.