30.10.10

"Escrever: organizar montanhas para a água passar" *

Por causa deste post lembrei-me da Elisinha e da Maria da Turíbia, as minhas catequistas algures entre 1987/88.

A Elisinha e a Maria sempre me fascinaram pela dupla que eram: a primeira, muito magra e seca, a segunda, bem rotunda e de cara bolachuda, costumavam ir buscar-nos à primária, depois das aulas. Eu fazia aquele caminho até à Igreja, sem perceber bem ao que ia e o meu maior contentamento era saber que podia ir pintar uns bonecos de Jesus Cristo e aprender a oração de Santa Bárbara, para usar nas noites de trovoada.
Ainda hoje quando me lembro que tínhamos catequese na sala mortuária - com uma alcatifa verde e pesada e uma mesa de pedra branca ao centro, sempre tapada por uma toalha áspera, onde eram velados os mortos - penso que tenho muita sortezinha em ser minimamente sã das ideias. 
O padre João, comandante daquele exército de discípulas do Senhor, controlava aquilo a pente fino: toda e qualquer dúvida que elas não sabiam esclarecer, era rematada com um Não sei, mas o senhor padre há-de saber. E eu lá ficava a contar que elas me respondessem na aula seguinte. Foi por isso que fiquei a saber que descendemos de Deus e não dos macacos, porque não há macacos ruivos, loiros e morenos ou que se pecasse, os mortos vêm de noite puxar-te os dedos dos pés para te castigar. Deve ser por isso que aos 32 me continuo a tapar até às orelhas.
Naquela altura, os rapazes eram bem mais atrevidos que as miúdas e costumavam ir para o largo ao pé do cemitério (don't ask...) ter conversas parvas e medir as pilas. Quando foram apanhados, acabámos todos por levar um valente discurso sobre amor, casamento, procriação e as coisas que íamos começar a descobrir sozinhos, sobre o nosso corpo. Não foi usada a palavra masturbação, mas sei perfeitamente que quando tentei essa nobre arte pela primeira vez, me veio a voz delas à cabeça, ficando a sentir-me culpada e com medo que me nascessem cravos nos dedos ou que nunca mais pudesse ter filhos.

A Elisinha, soube pela minha mãe, está fechada em casa, meio louca das ideias. O único filho parece que não tem muito tempo para cuidar dela e as vizinhas dizem que ela leva o dia inteiro a gritar que tem fome e que a estão a matar. A Maria, essa, depois de lhe ter morrido o marido, passa as tardes na varanda, com uns óculos ainda mais grossos que aquilo que me lembrava. Há uns tempos subi as escadas para lhe dar um beijinho. Não me conheceu.

*Verso de Daniel Melim

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