vamos ver se consigo escrever este texto com um mínimo de organização: rezemos então à musa que tão longe tem andado e ao meu vizinho que não pára de ouvir a banda sonora d’ O Piano, desde as três da tarde. Dude, Michael Nyman é p’ra meninas. Homem a sério e com bom gosto ouve Bill Evans.
Duarte de Bragança pediu nacionalidade timorense. Primeiro achei que tinha lido mal, mas não, ali estava a notícia da TSF a confirmar isso mesmo e, como se não chegasse, as televisões bateram na mesma tecla.
Eu até podia ter ido investigar que raio de trabalho tem feito a Casa Real para ter tão “profundas relações” com Timor-Leste, mas estou sem paciência e o meu preconceito neste tipo de questões leva-me a pensar sempre o mesmo: dão dinheiro a umas quantas entidades que se encarregam de o enviar para lá transformado em livros, comida, brinquedos para os miúdos, apoio para organizações não-governamentais, whatever.
Pois bem, meus caros, newsflash: essa merda não adianta um grosso e não sei como ainda não entenderam o quão verdadeira é a história da cana de pesca e do peixe.
Dois anos de trabalho em Timor Lorosa’e fizeram-me perceber a velha questão de sempre: que o Ocidente tem tentado a todo o custo impor o seu estilo de vida e forma de pensar, investindo, praticamente a fundo perdido, meios, dinheiro, recursos humanos, boa vontade e teimosia.
Quando cheguei a Díli em 2002 ainda havia marcas de tiros nas paredes e respirava-se aquele ambiente de esperança de que as coisas iam mudar. As missões da UNMISET estavam por todo o lado e com elas prosperou o comércio local e o aparecimento de hotéis, restaurantes, bares e discotecas, na maior parte apenas acessíveis aos estrangeiros. Não sei se foi da quantidade de jovens que vi a vadiar plas ruas sem trabalho, encenando golpes de artes marciais aprendidos nos filmes pirateados ali ao lado na Indonésia, se do facto das minhas malas terem ficado em Amesterdão e de estar uma humidade filha-da-mãe e eu com roupa de Inverno no pêlo, mas não acreditei que a tal mudança viesse para ficar. Quanto mais não fosse porque, assim que os estrangeiros partissem, levariam com eles todas as infra-estruturas montadas.
Logo na primeira ida para Baucau, onde ia dar aulas, fui apresentada ao modus operandi de quem não conhece outra maneira de viver a não ser a da própria sobrevivência: o Tobias, condutor da nossa carrinha, atropelou um cão e, de imediato, juntaram-se uns 30 ou 40 timorenses à nossa volta, com um de cenho mais carrancudo a gritar desalmadamente. Calhou-me na rifa desembolsar uns 70 dólares para pagar o cão e para nos deixarem seguir caminho. Isto havia de se repetir frequentemente, tanto no centro da cidade e arredores, como nas minhas viagens de sexta até Osso Huna, uma terra perdida nos picos da montanha. Uns quantos malandros toparam a que horas eu passava ali e logo montaram esquema: derrubavam uma ou duas árvores e eu se quisesse continuar para ir trabalhar tinha que pagar. Caso contrário, era voltar para trás e fazer figas para que o gasóleo, desta vez, não tivesse sido misturado com água.
O dinheiro servia como desculpa para tudo. Na minha primeira escola, em Triloka, os meus colegas professores costumavam escolher um aluno a quem incumbiam de pegar no manual da disciplina, copiar os textos para o quadro e, depois, fazer perguntas ao resto da turma até que tudo estivesse decorado. Enquanto isso, eles voltavam à sala de trabalho, juntavam duas cadeirinhas e dormiam uma sesta. Porque eram pagos no final do mês com sacos de arroz e nós, os malai - estrangeiros, com dinheiro. Logo, bem podíamos dar o corpo ao manifesto e, logo, tínhamos a obrigação de lhes dar dólares, como uma vez me explicou o Mestre Agostinho, director do agrupamento, só naquela de atirar o barro à parede a ver se pegava. Não pegou. Perguntei-lhe de que coisas precisavam na escola, peguei em boa parte do meu ordenado e comprei uma data de material, na condição de que todos, sem excepção, o pudéssemos usar, em vez de ficar guardado a ganhar bafio. E digo isto porquê? Lembram-se de uma famosa campanha de venda de relógios, cujo objectivo era equipar por lá uma escola? Garanto-vos que estive nessa escola: linda, toda pintada de novo, boa biblioteca, materiais, tudo. Fechada. Os miúdos tinham aulas numas salas velhas ao lado porque a escola só era aberta em dias das visitas importantes dos governantes estrangeiros.
Fico danada, danada da vida quando me lembro destas coisas. Boa parte de mim ficou naquela terra e naquele mar. Poupo-vos o discurso meloso e saudosista, mas a verdade é que os meus olhos brilham sempre que penso em voltar. Fui uma privilegiada, aprendi muito com gente que lá deixei e que continua na sua vida, ignorando que eu continuo na minha. Mas também desaprendi da raça humana, também abri os olhos. Essa merda das "relações espirituais, do povo timorense com Portugal” é uma tremenda de uma generalização, daquelas coisas bonitas e cor-de-rosa que fica bem dizer na porra da imprensa (danada, já disse). Se por um lado a Hermininha, o Mestre Manu, o senhor Rui, o senhor Manuel foram das melhores pessoas com quem dividi esses dois anos de vida; se por um lado tive aquele aluno a trazer-me, de lágrimas nos olhos, a bandeira de Portugal que estava guardada lá em casa desde a década de 70; se por um lado os meus mais pequenos me disseram, num dos últimos dias, que não iam esquecer o que eu lhes tinha ensinado, por outro também fui insultada bastas vezes na rua por ser malai, por ser diferente, mais alta, mais branca, mais gorda; por outro também fiquei fechada em casa durante uma semana e picos, com uma mochila de emergência feita e o plano de evacuação estudado, enquanto lá fora os timorenses pró-Indonésia incendiavam a esquadra de polícia e apedrejavam a nossa casa dizendo-nos para voltar para o nosso país; por outro também tive que fugir e esconder-me, numa rua de Díli, para não levar uma catanada de um grupo de gajos que se juntou à porrada e decidiu embicar com os portugueses.
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Não impinjo a visão do paraíso perdido, ah aquilo lá é que é e eles gostam tanto de nós, coitadinhos dos pretinhos. Em assim sendo, agradeço que não me vendam estas notícias de cocó, em jeito de statement estão a ver como se faz para ganhar o céu, porque não as compro. O chefe da Casa Real bem pode ir cantar para outra freguesia que a mim não me alegra, nem convence.
Danada.
3 comentários:
Excelente texto. De forma muito menos interessante, e em jargão economicista - já Tom Friedman tinha dado a entender o mesmo em relação ao Afeganistão. É uma questão do ser humano, não de países ou civilizações. Tem a ver com ter de se ir à procura de...
E parte desta imagem de "solidariedade e estreitas relações entre países" é apenas e só fabricada pela comunicação social. E pelo facto de Timor estar a boiar em petróleo.
Esconder-se para não levar uma catanada é mau, muito mau... Ainda me lembro dos grupos de timorenses a quem deram a oportunidade de tirar o curso na minha faculdade e posso atestar que o modus operandi se estende às "elites pensantes" do país... Beijo.
Pedro: obrigada. É também uma questão de mentalidade, A tal que leva muito tempo a ser modificada.
Kawamura; Timor está a boiar em petróleo e estou em crer que os tubarões australianos têm por isso "relações profundas e espirituais" por lá.
beijinhos
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