"Às vezes a voz do narrador necessita de espaço, não se satisfaz com uma frase minorca, nem toda a gente tem de ser telegráfica, às vezes a frase quer espraiar-se, viajar, ver até onde pode ir, feita canoa a descer os rápidos ou a desabar por uma cascata e a contorcer-se toda para não embater nas pedras, ou então a voz faz-se vaga de fundo que se vai fazendo ouvir aos poucos até ribombar e trovejar e explodir, como uma orquestra a tocar uma valsa que ao princípio quase não se ouve nada, depois os instrumentos vão entrando, e vão subindo, subindo, e sentimos uma excitação, antecipamos que algo vai acontecer, mas ainda não estamos lá, o contador atrasa a história de propósito, faz-nos sofrer, obriga-nos a trabalhar, ele promete que no fim da viagem haverá algo de recompensador, mas troça de nós, espicaça-nos, diz que (se quisermos) podemos desistir já ali, diz mesmo que a maior parte dos leitores desiste já ali, é uma voz que nos fala como um sargento num treino das forças especiais, dos comandos, e o sargento murmura-nos à orelha Ó pá vai para casa, não tens estofo para isto, vai mas é sentar-te frente ao televisor a ver um concurso e a beber até caíres só para isso serves desiste meu caro esta página não é para ti agora já nem vírgulasmuletas tens para te apoiares ó grande melro é muito ensopado de letras para a tua camioneta já nem te consegues concentrar na frase perdeste o pé nem sabes nem sabes em qual linha ias estás feito mais vale desisitires, vai mas é comprar um daqueles romances-treta, que são vira o disco e toca o mesmo, ariv o ocsid e acot o omsem, já nem isto percebes porque nem sequer és do tempo dos discos a sério, com lado A e lado B, tu és mais assim que a modos de mp3, a tua geração nem sequer consegue dar um nome às coisas, só siglas, até a vossa música é um atraso de vida, hip hop, hip hip hop, hip!, hop!, parece que estão com soluços, hip!, ou com um sapo aos saltos pela boca, hop!, e depois desta avalanche o leitor sente-se compelido a desistir, caramba, ainda por cima a história não avança, o parágrafo já vai em página e meia e a frase ainda não chegou ao fim, e o leitor está quase a desistir, mesmo quase, quase, QUASE A DESISTIR, até que (de repente, como uma santa aparecendo a um pastorinho) percebe que às vezes as páginas de um livro têm de mesmo de fazer montanha russa com as palavras e se resistirmos afogamo-nos, a única solução é deixares-te levar, deixares-te ir na enxurrada, deixares-te absorver por aquele turbilhão de palavras, em vez de estares sempre a choramingar que querias um livro com menos vírgulas..."
Rui Zink, O Anibaleitor, Editorial Teorema, 2010, pp. 79-81